segunda-feira, 24 de agosto de 2015

A dignidade humana ofendida

Por William Saunders e Michael Black

Será que um ser humano deixa de ser pessoa só porque a sua vida depende dos outros para existir?
Em abril de 1879, uma corte do Oeste americano rejeitou de bom grado a alegação de um advogado do distrito que dizia que um determinado líder indígena, chamado Urso Sentado, não era uma pessoa “perante a lei”. Um mês depois, o irmão de Urso Sentado, Grande Serpente, tentou sair da reserva indígena em que vivia. O General no comando do Exército que vigiava o local explicou a Grande Serpente que a decisão da corte garantia apenas a pessoalidade do seu irmão, não a sua. Grande Serpente não entendeu e foi morto com um tiro por ter resistido à prisão1.
Há séculos que se debatem quais são as qualidades humanas que constituem a pessoalidade. A discussão talvez tenha começado à sério no século XVI, quando os portugueses e os espanhóis descobriram novos povos na África e na América. A escravização dos nativos desencadeou um intenso debate filosófico dentro da Igreja. Um lado afirmava que os hábitos e costumes primitivos dos índios davam provas da sua natureza sub-humana, o que justificaria a sua escravização pelos europeus, mais avançados culturalmente. O outro lado, que no final venceu, reiterava que os hábitos primitivos e a falta de educação dos nativos não constituíam motivos para não considerá-los seres humanos com todos os seus direitos, pois todos os homens foram feitos a imagem e a semelhança de Deus.
Esse debate acendeu o estopim de uma corrente de pensamento que foi progredindo com o passar dos séculos. Sua explosão acabou com a escravidão, deu o direito de voto às mulheres e humanizou as condições de trabalho dos operários, além de muitos outros benefícios. A sua maior conquista foi o reconhecimento de direitos humanos inalienáveis nos países cristãos do Ocidente; direitos estes garantidos por lei.
As discussões do século XVI acerca da pessoalidade e dignidade humana procuravam definir se o incesto, a falta de escrita, a nudez, o sacrifício humano, o abandono de bebês e outros hábitos primitivos permitiam dizer uma que uma determinada tribo não faz parte da humanidade e, por conseguinte, que seus membros não gozam dos direitos humanos. O debate atual, entretanto, não leva em conta hábitos e costumes, mas a questão da dependência.
Há uma crescente tendência de justificar o ataque a qualquer vida apoiando-se na questão da dependência. Os defensores do aborto, por exemplo, já não tentam mais argumentar que a vida antes do nascimento não é humana, pois o avanço tecnologia de ultra som tirou essa arma do seu arsenal. Entretanto, eles dizem que as crianças não nascidas não gozam dos mesmos direitos de uma pessoa autônoma porque são totalmente dependentes da mãe. O mesmo vale para pessoas que por algum motivo não podem valer-se por si próprios, como os que estão em estado de coma ou com doenças degenerativas. Segundo essa lógica, os humanos dependentes não são pessoas diante da lei.
O CASO DE TERRI SCHIAVO
Essa questão transformou-se recentemente num campo de batalha moral. Ganhou notoriedade com o caso de Terri Schiavo, que em 1990 – aos 26 anos de idade – sofreu uma parada cardíaca que interrompeu por 10 minutos a oxigenação do cérebro, deixando-a severamente incapacitada. Ultimamente recebia toda a água e alimentação por uma sonda, que foi removida por ordem do seu marido. Seguiu-se um batalha judicial entre ele e os pais de Terri: estes queriam que a alimentação continuasse, mas acabaram sendo derrotados nos tribunais. Em março de 2005, treze dias após a retirada da sonda, Terri morreu. Quais são os critérios morais aplicáveis a uma situação como essa?
Em 20 de março de 2004, o Papa João Paulo II fez um discurso no Congresso Internacional Life-Sustaining TreatmentsVegetative State: Scientific AdvancesEthical Dilemmas2. Nesse pronunciamento, o Santo Padre desaprovou o uso da expressão “estado vegetativo permanente”. Em geral esse termo refere-se a um paciente que não apresenta quaisquer sinais de consciência nem de percepção do mundo exterior, não reage a estímulos específicos e parece não ser capaz de interagir com outras pessoas. O problema com essa terminologia é que ela tende a reduzir a pessoa humana à qualidade de um simples vegetal.
Quando uma pessoa não é mais considerada humana, mas um mero vegetal, então pode ser sacrificada, tal como um animal ferido ou uma planta doente. O mesmo vale quando a criança ainda não nascida, em vez de bebê, é chamada de feto ou de produto da concepção; esta última terminologia é usada nas tentativas de justificar o aborto, para não despertar a consciência.
Em seu discurso, João Paulo II disse:
“(...) sinto o dever de reafirmar com vigor que o valor intrínseco e a dignidade pessoal de cada ser humano não se alteram, quaisquer que sejam as circunstâncias concretas da sua vida. Um homem, mesmo quando se encontra gravemente doente ou impedido no exercício das suas funções mais nobres, é e será sempre um homem, nunca se tornará um «vegetal» ou um «animal».
“Também os nossos irmãos e irmãs que se encontram na condição clínica do «estado vegetativo» conservam completamente íntegra a sua dignidade humana. O olhar amoroso de Deus-Pai continua a velar sobre eles, reconhecendo-os como seus filhos particularmente necessitados de assistência.3
O termo vegetativo é ainda menos aplicável ao estado de Terri Schiavo. Apesar de não conseguir alimentar-se por conta própria, ela não estava em estado vegetativo. Sua vida não era prolongada por meio de aparelhos ou medicamentos e nenhuma das suas funções vitais foi afetada pelo colapso. Além disso, como podemos ver pelas inúmeras fotos divulgadas recentemente, ela era capaz de responder – mesmo que apenas com um olhar – a estímulos externos.
A Sociedade não deve, portanto, perder de vista a dignidade da pessoa, mesmo quando o diagnóstico diga que ela está em “estado vegetativo permanente”. Uma pessoa nessas condições merece os mesmos cuidados que as outras. O Papa enumerou os seguintes princípios, que asseguram a dignidade da pessoa nesse estado:
“O doente em estado vegetativo, na expectativa de recuperação ou do fim natural, tem direito a uma assistência hospitalar básica (alimentação, hidratação, higiene, aquecimento, etc.), e à prevenção das complicações relacionadas com o fato de estar de cama. Ele tem direito também a uma específica intervenção de reabilitação e à monitoração dos sinais clínicos de eventual recuperação.4
Um ponto chave é o primeiro princípio: a pessoa doente tem direito aos cuidados básicos de saúde, que inclui a alimentação e a hidratação. Alimentar uma pessoa doente não é medicá-la. Quando sentimos fome, não vamos a um restaurante comprar “remédios”. O princípio – que tem uma longa tradição nos ensinamentos éticos da Igreja sobre os cuidados médicos – foi enunciado com clareza pelo Papa Pio XII em 1957 e pela Declaração sobre a Eutanásia feita em 1980 pela Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé. O Papa João Paulo II afirmou:
“Em particular, gostaria de realçar como a administração de água e alimentos, mesmo quando é feita por vias artificiais, representa sempre um meio natural de conservação da vida, não um ato médico. Por conseguinte, o seu uso deve ser considerado, em linha de princípio, ordinário e proporcionado, e como tal moralmente obrigatório, na medida em que, e até quando, ele demonstra alcançar a sua finalidade própria, que, neste caso, consiste em fornecer ao doente alimento e alívio aos sofrimentos.5
Negar água e comida a uma pessoa é sentenciá-la a uma morte lenta e penosa, ou seja: é praticar uma forma de eutanásia. É interessante lembrar que no estado americano da Flórida (onde Terri morreu) é crime matar animais por inanição. Lembremos que a definição de eutanásia é: “uma ação ou uma omissão que por sua natureza ou intenção, causa a morte com o fim de eliminar toda dor”6. Em outras palavras, a eutanásia implica ter a intenção de fazer com que a vida termine, e empregar para isso uma ação direta, como uma injeção letal, ou uma omissão, como a de não alimentar ou não dar de beber. Como ensinou João Paulo II:
(...) a eutanásia é uma violação grave da Lei de Deus, enquanto morte deliberada moralmente inaceitável de uma pessoa humana.7
Em vez disso, a compaixão deve levar a ações positivas:
a verdadeira “compaixão”, de fato, torna solidário com a dor alheia, não suprime aquele de quem não se pode suportar o sofrimento.8
Nesses casos a compaixão tem duas faces: em primeiro lugar, como afirmou o Papa João Paulo II, as famílias que têm entes queridos nessas condições precisam elas mesmas de apoio, que consistirá em ajudá-las a cuidar do doente, em auxiliá-las financeiramente, em facilitar-lhes o acesso aos programas de reabilitação, e em dar-lhes consolo e orientação espiritual. Em segundo lugar, a compaixão exige prestar ajuda a esses membros mais vulneráveis de nossa Sociedade e defender a sua dignidade.
Havia um senhor no Hospital Woodbine, em Alexandria (Virginia), que visitava diariamente a sua esposa, portadora do mal de Alzeimer. Ele dava-lhe de comer às colheradas, como uma criança pequena. Com certeza, era uma tarefa difícil, que consumia muito tempo e requeria uma boa dose de paciência. Mas para ele era um ato de amor.
No caso de Terri, entretanto, uma interpretação errônea da palavra “compaixão” acabou tendo um desfecho trágico. Os pais queriam mantê-la viva, e dispunham-se a assisti-la em tudo; o marido e responsável legal, Michael Schiavo, que vive hoje com outra mulher e os dois filhos que ela lhe deu, pedia o fim da alimentação. Michael alegava que Terri manifestara o desejo de não receber tratamento caso chegasse a ficar gravemente incapacitada, como de fato aconteceu. Apesar de não dispor de nenhum documento ou registro desse suposto desejo, Michael desde 1991 proibiu os médicos de empreenderem qualquer tratamento curativo, embora alguns profissionais afirmassem que Terri poderia ter sido parcialmente reabilitada, se o tratamento tivesse sido aplicado. Além disso, Michael Schiavo gastou com advogados boa parte do milhão de dólares recebido do Governo norte-americano para o tratamento da esposa; estima-se que sobraram cerca de apenas cinqüenta mil dólares, que foram para ele após a morte da esposa.
Terri não sofria o risco de uma morte iminente e o seu estado sequer lhe causava dor. Se os seus pais tivessem ganhado a causa, e a sua alimentação conseqüentemente não tivesse sido interrompida, provavelmente ela ainda estaria vivendo da mesma maneira em que o vinha fazendo havia 15 anos. Era uma maneira que incomodava mais os outros, que sentiam “compaixão” por ela não poder ser “útil” ou “desfrutar a vida”, do que ela própria. A verdadeira compaixão é cuidar, não matar. João Paulo II assim concluía o discurso no Congresso já citado:
(...) exorto-vos, como pessoas de ciência, responsáveis pela dignidade da profissão médica, a conservar ciosamente o princípio segundo o qual a verdadeira tarefa de medicina é “curar se for possível, cuidar sempre9.

NOTAS
1. Raymond Dennehy, Anti-Abortionist at Large, (Trafford Publishing, Victoria BC, 2002) pág. 146.
2. O Congresso Internacional foi promovido pela Federação Internacional de Associações de Médicos Católicos e pela Academia Pontifícia para a Vida. Os trabalhos foram publicados por G. Gigli e N.D. Zasler no livro Life-Sustaining Treatments in Vegetative State: Scientific AdvancesEthical Dilemmas, IOS Press, Amsterdã, 2005.
O discurso completo (que doravante citaremos como Discurso...), na sua versão em português, está disponível no seguinte endereço eletrônico: http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/speeches/2004/march/documents/hf_jp ii_spe_20040320_congress fiamc_po.html.
3. Discurso..., nº 3
4. Discurso..., nº 4
5. Discurso..., nº 4
6. Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, Declaração Iura et Bona sobre a Eutanásia, 5/5/1980.
7. Encíclica Evangeluim Vitae, nº 65
8. Encíclica Evangeluim Vitae, nº 66
9. Discurso..., nº 7

Tradução: Quadrante

http://www.quadrante.com.br/artigos_detalhes.asp?id=63&cat=12

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