Por William Saunders e Michael Black
Será
que um ser humano deixa de ser pessoa só porque a sua vida depende dos outros
para existir?
Em
abril de 1879, uma corte do Oeste americano rejeitou de bom grado a alegação de
um advogado do distrito que dizia que um determinado líder indígena, chamado
Urso Sentado, não era uma pessoa “perante a lei”. Um mês depois, o irmão de
Urso Sentado, Grande Serpente, tentou sair da reserva indígena em que vivia. O
General no comando do Exército que vigiava o local explicou a Grande Serpente
que a decisão da corte garantia apenas a pessoalidade do seu irmão, não a sua.
Grande Serpente não entendeu e foi morto com um tiro por ter resistido à prisão1.
Há
séculos que se debatem quais são as qualidades humanas que constituem a
pessoalidade. A discussão talvez tenha começado à sério no século XVI, quando
os portugueses e os espanhóis descobriram novos povos na África e na América. A
escravização dos nativos desencadeou um intenso debate filosófico dentro da
Igreja. Um lado afirmava que os hábitos e costumes primitivos dos índios davam
provas da sua natureza sub-humana, o que justificaria a sua escravização pelos
europeus, mais avançados culturalmente. O outro lado, que no final venceu,
reiterava que os hábitos primitivos e a falta de educação dos nativos não
constituíam motivos para não considerá-los seres humanos com todos os seus
direitos, pois todos os homens foram feitos a imagem e a semelhança de Deus.
Esse
debate acendeu o estopim de uma corrente de pensamento que foi progredindo com
o passar dos séculos. Sua explosão acabou com a escravidão, deu o direito de
voto às mulheres e humanizou as condições de trabalho dos operários, além de
muitos outros benefícios. A sua maior conquista foi o reconhecimento de
direitos humanos inalienáveis nos países cristãos do Ocidente; direitos estes
garantidos por lei.
As
discussões do século XVI acerca da pessoalidade e dignidade humana procuravam
definir se o incesto, a falta de escrita, a nudez, o sacrifício humano, o
abandono de bebês e outros hábitos primitivos permitiam dizer uma que uma
determinada tribo não faz parte da humanidade e, por conseguinte, que seus
membros não gozam dos direitos humanos. O debate atual, entretanto, não leva em
conta hábitos e costumes, mas a questão da dependência.
Há
uma crescente tendência de justificar o ataque a qualquer vida apoiando-se na
questão da dependência. Os defensores do aborto, por exemplo, já não tentam
mais argumentar que a vida antes do nascimento não é humana, pois o avanço
tecnologia de ultra som tirou essa arma do seu arsenal. Entretanto, eles dizem
que as crianças não nascidas não gozam dos mesmos direitos de uma pessoa
autônoma porque são totalmente dependentes da mãe. O mesmo vale para pessoas
que por algum motivo não podem valer-se por si próprios, como os que estão em
estado de coma ou com doenças degenerativas. Segundo essa lógica, os humanos
dependentes não são pessoas diante da lei.
O
CASO DE TERRI SCHIAVO
Essa
questão transformou-se recentemente num campo de batalha moral. Ganhou
notoriedade com o caso de Terri Schiavo, que em 1990 – aos 26 anos de idade –
sofreu uma parada cardíaca que interrompeu por 10 minutos a oxigenação do
cérebro, deixando-a severamente incapacitada. Ultimamente recebia toda a água e
alimentação por uma sonda, que foi removida por ordem do seu marido. Seguiu-se
um batalha judicial entre ele e os pais de Terri: estes queriam que a
alimentação continuasse, mas acabaram sendo derrotados nos tribunais. Em março
de 2005, treze dias após a retirada da sonda, Terri morreu. Quais são os
critérios morais aplicáveis a uma situação como essa?
Em
20 de março de 2004, o Papa João Paulo II fez um discurso no Congresso
Internacional Life-Sustaining TreatmentsVegetative State: Scientific
AdvancesEthical Dilemmas2. Nesse pronunciamento, o Santo Padre
desaprovou o uso da expressão “estado vegetativo permanente”. Em geral esse
termo refere-se a um paciente que não apresenta quaisquer sinais de consciência
nem de percepção do mundo exterior, não reage a estímulos específicos e parece
não ser capaz de interagir com outras pessoas. O problema com essa terminologia
é que ela tende a reduzir a pessoa humana à qualidade de um simples vegetal.
Quando
uma pessoa não é mais considerada humana, mas um mero vegetal, então pode ser
sacrificada, tal como um animal ferido ou uma planta doente. O mesmo vale
quando a criança ainda não nascida, em vez de bebê, é chamada de feto ou de
produto da concepção; esta última terminologia é usada nas tentativas de
justificar o aborto, para não despertar a consciência.
Em
seu discurso, João Paulo II disse:
“(...)
sinto o dever de reafirmar com vigor que o valor intrínseco e a dignidade
pessoal de cada ser humano não se alteram, quaisquer que sejam as
circunstâncias concretas da sua vida. Um homem, mesmo quando se encontra
gravemente doente ou impedido no exercício das suas funções mais nobres, é e
será sempre um homem, nunca se tornará um «vegetal» ou um «animal».
“Também
os nossos irmãos e irmãs que se encontram na condição clínica do «estado
vegetativo» conservam completamente íntegra a sua dignidade humana. O olhar
amoroso de Deus-Pai continua a velar sobre eles, reconhecendo-os como seus
filhos particularmente necessitados de assistência.3”
O
termo vegetativo é ainda menos aplicável ao estado de Terri Schiavo. Apesar de
não conseguir alimentar-se por conta própria, ela não estava em estado
vegetativo. Sua vida não era prolongada por meio de aparelhos ou medicamentos e
nenhuma das suas funções vitais foi afetada pelo colapso. Além disso, como
podemos ver pelas inúmeras fotos divulgadas recentemente, ela era capaz de
responder – mesmo que apenas com um olhar – a estímulos externos.
A
Sociedade não deve, portanto, perder de vista a dignidade da pessoa, mesmo
quando o diagnóstico diga que ela está em “estado vegetativo permanente”. Uma
pessoa nessas condições merece os mesmos cuidados que as outras. O Papa
enumerou os seguintes princípios, que asseguram a dignidade da pessoa nesse
estado:
“O
doente em estado vegetativo, na expectativa de recuperação ou do fim natural,
tem direito a uma assistência hospitalar básica (alimentação, hidratação,
higiene, aquecimento, etc.), e à prevenção das complicações relacionadas com o
fato de estar de cama. Ele tem direito também a uma específica intervenção de
reabilitação e à monitoração dos sinais clínicos de eventual recuperação.4”
Um
ponto chave é o primeiro princípio: a pessoa doente tem direito aos cuidados
básicos de saúde, que inclui a alimentação e a hidratação. Alimentar uma pessoa
doente não é medicá-la. Quando sentimos fome, não vamos a um restaurante
comprar “remédios”. O princípio – que tem uma longa tradição nos ensinamentos
éticos da Igreja sobre os cuidados médicos – foi enunciado com clareza pelo
Papa Pio XII em 1957 e pela Declaração sobre a Eutanásia feita em 1980 pela Sagrada
Congregação para a Doutrina da Fé. O Papa João Paulo II afirmou:
“Em
particular, gostaria de realçar como a administração de água e alimentos, mesmo
quando é feita por vias artificiais, representa sempre um meio natural de
conservação da vida, não um ato médico. Por conseguinte, o seu uso
deve ser considerado, em linha de princípio, ordinário e proporcionado,
e como tal moralmente obrigatório, na medida em que, e até quando, ele
demonstra alcançar a sua finalidade própria, que, neste caso, consiste em
fornecer ao doente alimento e alívio aos sofrimentos.5”
Negar
água e comida a uma pessoa é sentenciá-la a uma morte lenta e penosa, ou seja:
é praticar uma forma de eutanásia. É interessante lembrar que no estado
americano da Flórida (onde Terri morreu) é crime matar animais por inanição.
Lembremos que a definição de eutanásia é: “uma ação ou uma omissão que por sua
natureza ou intenção, causa a morte com o fim de eliminar toda dor”6.
Em outras palavras, a eutanásia implica ter a intenção de fazer com que a vida
termine, e empregar para isso uma ação direta, como uma injeção letal, ou uma
omissão, como a de não alimentar ou não dar de beber. Como ensinou João Paulo
II:
(...) a
eutanásia é uma violação grave da Lei de Deus, enquanto morte deliberada
moralmente inaceitável de uma pessoa humana.7
Em
vez disso, a compaixão deve levar a ações positivas:
a
verdadeira “compaixão”, de fato, torna solidário com a dor alheia, não suprime
aquele de quem não se pode suportar o sofrimento.8
Nesses
casos a compaixão tem duas faces: em primeiro lugar, como afirmou o Papa João
Paulo II, as famílias que têm entes queridos nessas condições precisam elas
mesmas de apoio, que consistirá em ajudá-las a cuidar do doente, em auxiliá-las
financeiramente, em facilitar-lhes o acesso aos programas de reabilitação, e em
dar-lhes consolo e orientação espiritual. Em segundo lugar, a compaixão exige
prestar ajuda a esses membros mais vulneráveis de nossa Sociedade e defender a
sua dignidade.
Havia
um senhor no Hospital Woodbine, em Alexandria (Virginia), que visitava
diariamente a sua esposa, portadora do mal de Alzeimer. Ele dava-lhe de comer
às colheradas, como uma criança pequena. Com certeza, era uma tarefa difícil,
que consumia muito tempo e requeria uma boa dose de paciência. Mas para ele era
um ato de amor.
No
caso de Terri, entretanto, uma interpretação errônea da palavra “compaixão”
acabou tendo um desfecho trágico. Os pais queriam mantê-la viva, e dispunham-se
a assisti-la em tudo; o marido e responsável legal, Michael Schiavo, que vive
hoje com outra mulher e os dois filhos que ela lhe deu, pedia o fim da
alimentação. Michael alegava que Terri manifestara o desejo de não receber
tratamento caso chegasse a ficar gravemente incapacitada, como de fato
aconteceu. Apesar de não dispor de nenhum documento ou registro desse suposto
desejo, Michael desde 1991 proibiu os médicos de empreenderem qualquer
tratamento curativo, embora alguns profissionais afirmassem que Terri poderia
ter sido parcialmente reabilitada, se o tratamento tivesse sido aplicado. Além
disso, Michael Schiavo gastou com advogados boa parte do milhão de dólares
recebido do Governo norte-americano para o tratamento da esposa; estima-se que
sobraram cerca de apenas cinqüenta mil dólares, que foram para ele após a morte
da esposa.
Terri
não sofria o risco de uma morte iminente e o seu estado sequer lhe causava dor.
Se os seus pais tivessem ganhado a causa, e a sua alimentação conseqüentemente
não tivesse sido interrompida, provavelmente ela ainda estaria vivendo da mesma
maneira em que o vinha fazendo havia 15 anos. Era uma maneira que incomodava
mais os outros, que sentiam “compaixão” por ela não poder ser “útil” ou
“desfrutar a vida”, do que ela própria. A verdadeira compaixão é cuidar, não
matar. João Paulo II assim concluía o discurso no Congresso já citado:
(...)
exorto-vos, como pessoas de ciência, responsáveis pela dignidade da profissão
médica, a conservar ciosamente o princípio segundo o qual a verdadeira tarefa
de medicina é “curar se for possível, cuidar sempre”9.
NOTAS
1. Raymond Dennehy, Anti-Abortionist at
Large, (Trafford Publishing, Victoria BC, 2002) pág. 146.
2. O Congresso
Internacional foi promovido pela Federação Internacional de Associações de
Médicos Católicos e pela Academia Pontifícia para a Vida. Os trabalhos foram
publicados por G. Gigli e N.D. Zasler no livro Life-Sustaining
Treatments in Vegetative State: Scientific AdvancesEthical Dilemmas, IOS
Press, Amsterdã, 2005.
O discurso completo (que doravante
citaremos como Discurso...), na sua versão em português, está
disponível no seguinte endereço eletrônico: http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/speeches/2004/march/documents/hf_jp
ii_spe_20040320_congress fiamc_po.html.
3. Discurso...,
nº 3
4. Discurso...,
nº 4
5. Discurso...,
nº 4
6. Sagrada Congregação
para a Doutrina da Fé, Declaração Iura et Bona sobre a
Eutanásia, 5/5/1980.
7. Encíclica Evangeluim
Vitae, nº 65
8. Encíclica Evangeluim
Vitae, nº 66
9. Discurso...,
nº 7
Tradução: Quadrante
http://www.quadrante.com.br/artigos_detalhes.asp?id=63&cat=12
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